A peste

 

                                   


            A peste

Por motivo de força maior hoje não será publicada a crônica carioca de costume

 

Uma crônica a meio pau dispensa todas as palavras de consideração, os parangolés de estilo e as borboletas amarelas que o Rubem Braga recomendava sacudir entre os parágrafos. Não vêm ao caso dessa vez. Humor zero. Impaciência a mil. Isso aqui é um texto impregnado da mesma febre, do mesmo vômito, do mesmo mal estar e doença que acomete a todos ao redor. Desidratação. A crônica baixou o hospital. Hoje não tem o conto da mulher seqüelada, as artimanhas do novo cafa ou o sonho do menino suburbano debaixo das luzes do coreto de Irajá. Todos de cama. Hoje não têm rapapé literário ao senhor reitor, lava-pé católico ao senhor dos anéis, muito menos votos de estima ao chefe do cerimonial. Malditos sejam todos e que os piolhos de mil camelos alojem-se em seus sovacos preguiçosos. Revoguem-se todas as disposições que restaram a favor e, pau na máquina, escreva-se agora apenas com a tecla do contra. Na gafieira o baile já não segue calmamente. Melou. Perdeu. Diarréia. Hemorragia. Hoje não tem baticum aos deuses nos balcões da malandragem ligeira. Tapinha nas costas, beijinho nos dois lados do rosto e cavaco afinado em sol maior. Nada disso. Não tem sussurro de nobreza romântica para arrefecer os brios da Miss Elegante Bangu, nenhum galanteio culto à moça da melancia. Vai tudo no grito saído das bocas de uma cidade inteira humilhada. Dói. Se não é o vizinho, é um filho ou a namorada. Alguém está morrendo logo ao lado e por isso seria de mau gosto pedir, agora, no balcão da carioquice, aquela que matou o guarda, a saideira ou cantar para subir. Chega de verbo serelepe. Sem nostalgia, sem charrete de pônei ao redor da praça da Tijuca, nenhuma bandinha tocando “Maria escandalosa” no baile do teatro Municipal. Sem essa de botar em cena a mulata assanhada que suspira, “ai como era bom”, olhos banhados pela lua cor de prata, no alto do mirante do Leblon. Chega de saudade. Não há futuro. Hoje vai tudo na gramática da raiva e na gramática feroz da falta de modos. Valhacouto de corruptos. Bando de incompetentes. Nenhuma pretensão hoje de contar uma história tão engraçada que sirva de comédia para animar o casal mal-humorado na hora do almoço ou, glória dos textos efêmeros, se desvanecer, bolha de sabão, antes mesmo de eles se sentarem para mais um debate da relação. O jogo de palavras perdeu a graça. Não é possível que alguém leia jornal e ainda tenha outro apetite se não o de exigir providências. Médico, soro, cama, remédio. Sem essa de crônica leve sobre o fim do verão. Hoje tudo que se quer das frases é que elas se prestem de escarro, catiripapo, pé no saco, carrinho por trás, um tapa no ouvido dos canalhas. A volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Chegou a hora de desligar os tubos, mas até que isso aconteça vai ser assim. Crônica de uma balada só. Vingança, vingança, vingança, aos homens clamar. Desista-se de subir os degraus da Penha. Não é hora de visitar o túmulo da Odetinha no São João Batista nem pular sete ondas para falar com Iemanjá na Prainha. Faz-se premência única e primeira a urgência de salvar vidas. Qualquer outro assunto seria deboche, seria tocar a pelada pelas laterais do Aterro, perder o foco e suspirar tolinho de melancolia pela fórmula perdida do frapê de coco do Simpatia. É preciso ir direto na bola do jogo. Hoje não têm “A vizinha faladeira”, estrogonofe no Bec Fin ou o passe de três dedos do Gerson. Ficou impossível admirar lá atrás o quarteirão art decó da Praça do Lido ou tentar descobrir lá na frente qual será a cantora que a nova Lapa vai revelar no próximo fim de semana. Urge, eis o verbo que ruge na canela dos cretinos encastelados. O tempo presente, a vida presente, eis a matéria de todos. Sem poesia. É o bicho pegando, o inseto picando. A paciência esgotou, o sangue subiu e a crônica coalhou. Hoje não têm comédia da vida privada, a traição das elegantes, as boas coisas da vida ou um desses clássicos da literatura de bermudas que, ao final, diante de tanta leveza e bem-aventurança, põem nos ouvidos de todos a impressão de que vale a pena ir em frente cantando “Alvorada” ou outro clássico do Cartola. Não vale. O samba morreu. É hora de salvar a pele e exigir seriedade aos que dormem, com repelentes por todos seus poros porcos, no aconchego do palácio. Hoje não tem fecho de ouro, nenhuma boutade do carioca esperto que dá a primeira ao santo e acena com dias de esperança. Não acredite. Milhares de pessoas jogadas nos corredores dos hospitais estão sem esta tecla de opção. O futuro cansou de dar plantão em tamanho hospital chinfrim. A vida engarrafou, não foi a ambulância, que elas estão todas enferrujadas ao redor da imensa lagoa de águas paradas. É o horror, o horror das crianças morrendo; o torpor, o torpor dos cínicos tirando o corpo fora. Hoje não será publicada neste espaço a crônica carioca de costume. Morreu ontem pela manhã o velho malandro da Lapa que resolvia tudo no papo furado, na base do deixa comigo e do não tem mosquito. Estava por fora. Hoje tem.

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