Aí eu disse pro Lula: 'Fica frio'

(publicada em abril de 2021)


 Parece que hoje lá pelo meio da tarde vai ter um golpe de estado, esse direito que o Millôr dizia ser constitucional dos militares, e isso me lembra uma história de décadas atrás.

Era um delegado do subúrbio, um sujeito bem razoável porque topou imediatamente quando a revista em que eu trabalhava propôs como reportagem uma diligência comandada por ele. Era um Rio de Janeiro onde a violência ainda seguia certo padrão de normalidade.

No dia da missão, o xerife suburbano logo se decepcionou comigo. Ele me ofereceu um revólver, e nisso não havia qualquer espanto porque era comum o repórter de polícia armado. Declinei. O delegado deu um sorrisinho de mofa e, entregando a arma a um detetive, disse com bom humor: “Guarda aí no porta-luvas. Mandaram o jornalista de literatura”.

Eu não era uma coisa nem outra, apenas um gastador de sola de sapato em busca da notícia. O tempo ainda era o do politicamente incorreto e a fonte, boa. Sem ferir a ética da profissão, educadamente conivente, dei de ombros. Sorri de leve.

O doutor delegado ficaria surpreso em perceber que esses nichos de especialização desapareceram. Viramos todos repórteres de polícia. Os jornais de 2021 são catálogos de novos crimes, em todas as editorias informam sobre expedientes em que não se mata apenas com revólver, mas com decretos, discursos, lives, fake news, comissões da Câmara e, como está programado para logo mais, ou amanhã pela manhã, golpe de estado. Jornal no Brasil virou Boletim de Ocorrência.

O jornalista de literatura, o cronista de costumes, o repórter de amenidades, o redator do artigo de fundo, a colunista de questões sentimentais e até o crítico de gastronomia – sumiram todos. Emprestam seus espaços para o noticiário policial vindo das autarquias federais e se boquiabrem na denúncia dos mais recentes métodos de extermínio. Estão matando nas páginas de futebol. São crimes que fariam a inveja do Esquadrão da Morte, do Mão Branca, dos Onze Homens de Ouro e outros baluartes da morte do tempo do delegado da diligência. Diante de 270 mil assassinatos, Tião Medonho é Zé Pequeno.   

No meio desse noticiário de exaltação da morte, a ressurreição de Lula me destampou o lado oposto da memória, o da luta pela vida. Foi um encontro no programa do Jô Soares, no tempo em que os entrevistados sentavam na primeira fila e esperavam a vez de vender seus peixes. Eu lançava um livro. Ao lado, o deputado federal Luiz Inácio da Silva. Poucos meses antes ele perdera sua terceira eleição presidencial.

Lula estava tão por baixo que Jô, aproveitando a deixa na conversa com um entrevistado, lançou do palco uma piada tripudiando do seu chorrilho de derrotas. O deputado ficou na dele. No momento em que a atenção da plateia voltou para o palco, Lula murmurou baixinho: “Esse gordo...”. Eu lhe fui cariocamente cúmplice: “Guenta, fica frio...”, sussurrei baixinho, entredentes, quase inaudível. Na semana passada, o discurso de renascimento no Sindicato dos Metalúrgicos me deu a certeza de que, às favas com a modéstia, ele ouviu.


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