Jiló sai do cardápio: amargo já basta o Bolsonaro

 




Venho por meio desta cumprimentar a alta direção do restaurante La Fiorentina pela reabertura de suas mesas, ocorrida em noite festiva na semana passada. Aproveito o ensejo para que considere com carinho o pedido ora anexado a esta missiva pública.

Fico honrado em ver permanecer no novo cardápio a homenagem a este modesto cronista de costumes citadinos, um glutão de pouco peso que antiga namorada, num momento de exaltação na DR, classificou raivosamente de magro de ruim. Ela se foi, meu amor pela simpática cantina do Leme permanece. Peço, no entanto, uma reparação gastronomicamente amistosa.

No cardápio anterior meu nome servia de apresentação a um prato de bife de fígado acebolado com purê e jiló, uma iguaria que a muitos poderia parecer exótica, mas me fazia jus. Desde a mais tenra infância estava no rol dos meus prazeres. O fígado-purê-jiló não era um prato, era uma biografia para quem quisesse ler com garfo e faca.

Vejo agora, porém, nesta nova temporada da Fiorentina, que o cardápio foi reformulado e meu nome colocado em um polpetone acompanhado de spaghetti na manteiga. Deve ser gostoso, agradeço – mas desta vez não me reconheço à mesa.

Atravessamos tempos calamitosos. A delicadeza tem sido um tempero desprezado nas relações e temo que um pedido desses possa parecer mais uma manifestação típica do mau humor nacional, a confirmação lamentável de que na degradação das boas normas de educação já exista no país alguém reclamando de ser homenageado. Não me é o caso.

Eu fui apresentado a um polpetone já nos idos tardios dos anos 1980. Foi na Vila Buarque, na cantina Jardim di Napoli, um monumento em forma de bolo de carne que, junto à Rita Lee e a esquina de Ipiranga com São João, Caetano poderia relacionar como outro item da mais completa tradução de São Paulo. Uma delícia, merece todos os garfos disponíveis no guia Michelin – mas, data vênia, não me representa. É fakenews culinário.

Eu tive a existência argamassada pelos miúdos de frango que a mãe carioca comprava no tripeiro da rua, pelas sardinhas que o pai português vendia no balcão do armazém e pela feijoada africana que a cozinheira orquestrava na cozinha. Misture essas panelas com a leitura das crônicas do Paulo Mendes Campos, a emoção diante da voz fanhosa da Aracy de Almeida. Desse sarapatel de sabores me pus de pé. O polpetone não me vai nas entrelinhas da formação.

Compreendo a dificuldade de se vender jiló para as novas gerações de comensais, admito a sabedoria popular que de amargo já basta o Bolsonaro – mas não posso me associar, de boca fechada, o guardanapo calado, a mais essa demolição de um tijolo da cultura. É como se, na ânsia de atrair paladares, o restaurante Cosmopolita, na Lapa, retirasse o alho frito do filé a Oswaldo Aranha, inventado ali pelo embaixador, e mesmo assim conservasse seu nome no cardápio.

Envio à equipe da Fiorentina os votos de sucesso e suplico a volta à mesa desse patrimônio carioca, o bife de fígado acebolado com os seus acompanhamentos. Conservo a crença nas boas intenções da Humanidade e, além dos propósitos comerciais, posso perceber a intenção benigna de um raio gourmetizador, um upgrade em me transferir para um prato de sonoridade e ingredientes mais sofisticados. Agradeço, mas melhor não. Qualquer agência checadora de fatos flagraria a falsidade do aplomb. Erro de pessoa. O polpetone não é meu lugar de fala, digo, de prato.

 

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