Em memória do jornalista que não deve ser esquecido
Geraldo Mayrink, o jornalista morto no início do mês, foi
meu editor na Veja nos anos 70. Tinha um texto de primeira, numa época em que
as redações valorizavam esses preciosismos, e foi autor de um dos livros mais
deliciosos que eu conheço, o “Memorando”, em parceria com Fernando Moreira
Salles. Não era bem um livro. Parecia um poema, talvez uma peça de teatro.
Mayrink e Salles apresentavam uma coleção de migalhas do cotidiano, aquela História
miúda que revela mais uma época do que os grandes discursos e acontecimentos
das primeiras páginas. Começava com “Eu me lembro que a soma do quadrado dos
catetos é o quadrado da hipotenusa” – e seguiam-se outras 100 páginas, com
frases começadas pelo “eu me lembro”, numa repetição hipnótica, quase um
“Bolero de Mayrink”. Uma sacada esperta que eu agora plagio com o meu
“memorando” particular da infância. É uma homenagem ao mestre e um pedido à Companhia
das Letras para reimprimir o livro.
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Eu me lembro que o bom menino não faz pipi na cama.
Eu me lembro que o Falcão Negro enfiava a espada por baixo
do sovaco do pirata, quase sempre o Dari Reis, e que este estrebuchava em ai,
ai, ai, até desabar no cenário, mortinho da silva.
Eu me lembro que a cor mais bonita do mundo era a do anil
Reckitt.
Eu me lembro que tinha uma escarradeira na sala e que seria
homem no dia em que me viesse o material orgânico para usá-la.
Eu me lembro que as meninas usavam anágua e combinação por
baixo das saias, quase sempre engomadas, quase uma burka.
Eu me lembro que o ataque do Flamengo era Joel, Moacir,
Henrique, Dida e Babá. Os meus outros super-heróis eram o Cavaleiro Negro, o
Capitão Marvel e o Jerônimo, na Rádio Nacional, que começava com a música:
“Quem passar pelo sertão, vai ouvir alguém falar, no herói desta canção...”
Eu me lembro das duas gotinhas da Esso dançando samba e
baião enquanto o jingle dizia “Só Esso dá ao seu carro o máximo, veja o que
Esso faz”.
Eu me lembro que o Cinta Azul fez uma promoção colocando
águas-marinhas dentro de alguns sabonetes, tudo para alavancar, uma palavra que
ainda não existia, a audiência daquele herói da bengala e da musiquinha “No
velho oeste ele nasceu, e entre bravos se criou, seu nome lenda se tornou, Bat
Masterson, Bat Masterson”.
Eu me lembro não havia nada mais malicioso do que a letra do
“Bigorrilho”, naquele trecho em que Jorge Veiga dizia “trepa Antonio, o siri ta
no pau, eu também sei tirar o cavaco do pau”. Ninguém entendia, mas de alguma
maneira parecia comentar como trilha sonora o “Vida Sexual”, do Fritz Khan,
escondido na gaveta de papai e mamãe.
Eu me lembro de fazer para o motorista do lotação um sinal
com a mão espalmada para baixo, significando que se topava viajar no corredor
entre as poltronas, abaixado, para a fiscalização não perceber.
Eu me lembro que colocar chumaço de Bom Bril na antena
melhorava a imagem da televisão.
Eu me lembro que misturar leite com manga matava e que era
preciso todo cuidado com o vento encanado. O remédio para todos os males era o
emplastro Sabiá.
Eu me lembro que a Fera da Penha se vingou de ter sido
abandonada matando a filha do amante, e que essa palavra, amante, piscava
confusa com a informação de que amor e pecado podiam estar juntos num trissílabo.
Eu me lembro que o Pico da Bandeira era o ponto mais alto do
país, da mesma forma que o Oiapoque era o ponto mais ao norte e o Arroio Chuí
mais ao sul.
Eu me lembro que o São Francisco era o rio da unidade
nacional.
Eu me lembro que não entendia onde a professora queria
chegar com aquela decoreba toda, mas, nas aulas de Linguagem, caprichava nas
redações em que precisava diferenciar “dissertação” e “descrição”, sem saber
que anos depois ganharia a vida misturando as duas.
Eu me lembro do rádio da vizinha cantando “O pensamento
parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar”. Eu
me lembro em seguida dos Trigêmeos Vocalistas, do Trio Nagô, do Trio Irakitan e
o do Trio Maravilhoso Regina. O Trio Esperança só viria muito depois.
Eu me lembro que a gemada estava no arsenal energético de
todo garoto e se fazia com ovo, noz moscada, canela e leite. A cerveja Caracu batida
no liquidificador com ovo, a casca inclusive, fazia o mesmo efeito.
Eu me lembro que o Biotônico Fontoura era o elixir da
juventude e, entre outras benesses, fortalecia a memória dos meninos que muitos
anos depois escreveriam, agradecidos, sobre seus tempos de menino.
Eu me lembro que a maior personalidade das redondezas era a
Zilda do Zé, já viúva do Zé, mas que só anos depois, quando soube que eles
tinham composto “Saca-rolha”, aquele do “As águas vão rolar”, é que eu dei
valor ao fato.
Eu me lembro que fazia a maior confusão entre os dez
mandamentos da lei de Deus, que começava com o “Amarás a Deus sobre todas as
coisas”, e os sete pecados capitais, aqueles do “Não cobiçarás a mulher do
próximo”. Até hoje, mesmo temendo incorrer em perjúrio diante das leis divinas,
acho que deviam fazer uma edição condensada, um remix.
Eu me lembro do medo de mastigar a hóstia consagrada e ser
denunciado pelo sangue de Jesus escorrendo no canto da boca. Eu me lembro do
medo de blasfemar e da ignorância de não saber, nem ter a quem perguntar, do
que se tratava.
Eu me lembro que o Brasil tinha orgulho de ser o maior país
católico do mundo, mas era muito triste quando começava a Ave Maria, às 18h, no
programa do Júlio Louzada.
Eu me lembro da Rádio Relógio e do locutor, sempre no
segundo antes de dar a hora exata,dizer que “Depois do sol, quem ilumina seu
lar é a Galeria Silvestre, a galeria da luz” – e acho que Oswald de Andrade
assinaria o texto com orgulho entre seus poemas modernistas.
Eu me lembro que quem gosta de cerveja “bate o pé e reclama,
quero Brahma” – mas eu gostava mesmo era do Yuki.
Eu me lembro que o chulo da época chamava coxa de mulher de
“mocotó” e que não havia mocotó no mundo como o de Rose Rondelli, a Miss
Campeonato da Rádio Mayrink Veiga.
Eu me lembro do cheiro que vinha da mistura de sorvetes
quando a gente metia a cara dentro da cumbuca da carrocinha do Kibon e
escolhia, no meio do vapor gelado, se ia de Jajá, de coco, ou Chicabom, de
chocolate.
Eu me lembro que era muito engraçado estudar na escola que
Manoel da Nóbrega foi um dos primeiros padres jesuítas a colonizar o país e à
noite ver na TV o gordo Manoel da Nóbrega receber, na Praça da Alegria, o
Ronald Golias, aquele do “Ô Cride!”.
Eu me lembro que meu pai achava Carlos Lacerda um crânio,
assim como tinha em alta conta intelecutal o Flávio Cavalcanti e o programa do
David Nasser, que vinha antes do Repórter Esso, testemunha ocular da história.
Eu me lembro que não havia nada pior, nem o jacaré à noite
embaixo da cama, do que uma colher do óleo de fígado de bacalhau, também muito
indicado para o fortalecimento geral dos músculos e da capacidade do cérebro em
armazenar miudezas como a de que o donatário da capitania de São Vicente era
Martin Afonso de Souza.
Eu me lembro dos topetes do Dida, do Zé Bonitinho e do
Ivanhoé, aquele cavaleiro medieval que entrava em cena no seriado da TV Rio com
a musiquinha “Sua espada e seu brasão são símbolos do rei, as vozes se
levantam, cantando com fervor, onde for, iremos também, juntos com Ivanhoé”.
Eu me lembro que muitos anos depois Geraldo Mayrink, cheio
de razão, começou uma matéria dizendo que não se fazia mais nostalgia como
antigamente.
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