O inventor da crônica carioca

 




Meu caro João do Rio, aqui quem fala é o Quinzinho da Vila da Penha e só estou tomando essas liberdades porque sou dos seus afilhados, repórter de rua, um sujeito que gasta sola de sapato e não escolhe buraco para se meter, tanto faz se o Buraco da Lacraia na Lapa, o Cabaré dos Bandidos em Caxias, a pérgula do Copa ou o caminho atapetado até a mesa forrada de trufas brancas no Fasano de Ipanema. Rio de Janeiro, eis a mesma pauta e devoção. Os afortunados, os malbaratados, tudo é do interesse e consideração.

Eu faço fé na lição máxima de sua obra genial, as ruas têm alma, algumas são guerreiras, outras mequetrefes, e gosto de submetê-las ao inquérito de minhas caminhadas. É vício e profissão. Depois, uma vírgula de asfalto aqui, um parágrafo de vitrine mais adiante, as aspas de uma tabuleta colada no poste, e as ruas vão servindo de passarela para o leitor também flanar ao redor da idiossincrasia delas. Euclides da Cunha já tinha inventado o repórter épico, você inventou o repórter das esquinas. Não dá manchete, mas dá sabor ao jornal.

Obrigado por ter saído todos os dias da redação de O País, A Pátria, e eternizado a fanfarronice da Ouvidor sabichã, e obrigado também por ter subido o morro de Santo Antônio com os sambistas calibrados de parati. O francês e o malandrês, você falou todas as línguas de seu tempo e eis aqui um aluno dedicado de seu curso. Rio, há muitos, João.

Você ensinou que dentro de uma cidade tem outra cidade, algumas perfumadas, outras esgoto puro, e sem preconceito lobrigou todas elas. A civilização europeia do Pereira Passos na Avenida Central, os batuques africanos de tia Ciata na Praça Onze – e espremido entre essas culturas, deslumbrado por todas as possibilidades de vivência, sem hierarquizar superioridades, você traduziu a alma encantadora das ruas do Rio de Janeiro.

Cem anos adiante de sua morte, infartado no meio da rua onde sempre viveu, eu quero dizer, meu caro João de Tantos Rios, que a espanhola voltou piorada, agora com o nome pouco poético de coronavírus. Somos 500 mil mortos, 212 milhões de quase mortos. A Ouvidor das redações dos jornais, a Lavradio dos chopes musicais, nenhum desses territórios de cidadania da nossa felicidade podem hoje ficar na mesma frase que “encantadora”.

Os repórteres, os cronistas, por mais que dediquem a existência ao culto de suas lições (“Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?”), foram avisados para fazer o contrário delas. Ficar em casa. Gastar sola de sapato virou sanitariamente perigoso. As notícias que chegam de fora das nossas janelas são do desaparecimento da deliciosa multidão de cocheiros de tílburis, músicos ambulantes, modern girl, chineses bêbados de ópio, ladrões sem pousada, poetas nefelibatas e feiticeiras ululando canções sinistras. Na alma desoladora das ruas do Rio de 2021 restou solitário o estressado entregador de iFood com o caixote vermelho às costas. No lugar das ruas ambíguas, das ruas nobres, das ruas trágicas e honestas, ficaram só as ruas desertas.

Os cronistas, então, mudaram de assunto. No momento, esperam que o tempo passe, a vacina faça efeito e eles possam novamente sair em campo e responder às questões que você, divino mestre da vida carioca, estabeleceu para a profissão. “Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua?”


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