Nas pegadas do Rubem Fonseca

 




 

 

Cronista persegue Rubem Fonseca em busca de uma crônica

 

 

 

Sempre que abro a geladeira das idéias e percebo a falta do presunto que dá liga sadia nos assuntos, eu pego uma pista qualquer da cidade. Vou subindo a Cláudio Coutinho, na praia Vermelha, assim como quem não quer nada, meu chapéu de lado, tamanco arrastando, lembrando Wilson Batista, lembrando gaiato que em prisca era era possível descer logo à direita, ali onde fica hoje o Jardim de Infância Municipal Gabriela Mistral, e, se o calor não me embaralha as geografias, encontrar o João de Barro com o João Roberto Kelly sentados numa cadeira de palha recolhida do Vermelhinho, na Araújo Porto Alegre. Os dois conversavam de olho na mulata bossa nova que caía no hully-gully, que caía matando, mas antes, culta, bem feita de corpo, cheia da nota, ela dava uma passada de olhos nos livros do Real Gabinete Português de Leitura. Era-lhe a tara. Foi há muito tempo. Agora, o Braguinha ido, o Kelly desaparecido e a mulata no hip-hop ensandecido, só continuamos eu e a falta de imaginação, os dois caminhando e cantando, seguindo as canções pela pista Cláudio Coutinho acima, ladeira da criatividade abaixo, mordiscando ao mesmo tempo uma língua do Penafiel e o decote da Penélope Cruz, tudo na esperança de que algum sabor estabeleça nexo e faça o assunto que me mate a fome de imaginação. Não é um passeio aflito. João do Rio desceu a Avenida centenas de vezes em busca de uma cena. Faz parte do jogo. Dá prazer também e quem ouviu Lupi sabe, conhece bem. O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar.

Nessas horas em que subo a Cláudio Coutinho, com as Cagarras no canto direito do olho, a mata Atlântica no canto esquerdo, eu me lembro do conto do Rubem Fonseca “A arte de andar nas ruas” e vou tentando fazer o mesmo. Bato perna a esmo para desbloquear o texto e desinstalar a razão, a ponto de no último dia 19, uma sexta-feira ali pelas nove horas da manhã, eu ter visto o celebrado contista conversando com uma moça na calçada à esquerda de quem segue o fluxo do trânsito da Avenida Ataulfo de Paiva no Leblon. Como se eu próprio fosse o detetive Mandrake de seus livros, segui Rubem e a moça discretamente por dois quarteirões até que ele, com um beijo respeitoso em cada bochecha, deixou-a na porta da academia A!BodyTech, na General Urquiza. O escritor vestia jeans-camiseta-e-boné, tudo preto, e ao contrário de mim não parecia procurar carona nas asas de qualquer narrativa. Borboletas passavam-lhe pelos ombros, mas eram só borboletas passando pelos ombros, nenhuma necessidade de estabelecer link com alguma história e preencher meia página aberta. Rubem flanava a felicidade do dever cumprido, uma obra genial na estante, e nem aí para os quatro olhos de quem o perseguia do outro lado da General Urquiza. Parou para comprar frutas no camelô da esquina com Ataulfo de Paiva, atravessou a rua em direção à Praça Antero de Quental e, agora já caminhando pela calçada da Dr. Scholl, desceu na direção da praia rumo ao seu apartamento. Não leu as notícias na banca de jornal. Já sabia. Eu, percebendo que acabara de criar a figura do cronista-paparazzi sem sequer ter flagrado no esforço qualquer assunto além da cena de um cidadão na vivência doméstica dos quarteirões de seu bairro, eu dei meia volta nos calcanhares e cheguei de novo ao que me é conforto e sombra, esta pista Cláudio Coutinho, na Urca, onde, quando a imaginação persiste sem frutos, procuro dar um banho de jaqueira nas idéias.

A literatura peripatética, se não abre as gavetas do cerebelo, pelo menos me esculpiria os músculos da perna. Resignei-me. Segui caminhando. Há quem ouça o delicado CD de Edson Celulari lendo as crônicas de Rubem Braga. Eu pego um sorvete de taperebá do Mil Frutas e saio chutando pedrinhas contra o paredão da praia Vermelha na esperança de que entre ar fresco nos miolos e se estabeleça alguma associação de idéias. Não reclamo. Carlos Drummond de Andrade confessou ao professor Roberto de tal que quando lhe faltava o presunto do assunto na geladeira da imaginação, ele procurava uma mulher qualquer, todas sempre novidadeiras, para conversar. Outro truque do mineiro era ir para a janela do apartamento na Conselheiro Lafayette em Copacabana observar os ônibus que passavam lá embaixo, inventando uma historinha para cada rosto nas janelas. Eu, diante da página em branco, simplesmente ando. Os neurônios tentam pegar no tranco enquanto sacolejo no precipício da Cláudio Coutinho sobre o Atlântico. Arquivo flashes. Vou etiquetando besouros. Uma mulher sarada, músculos de halterofilista, corre dentro do collant vermelho e sorri um oi afirmativo quando cruza por uma outra e é saudada com o grito de “E aí tenente?!”. Eu anoto impressões num caderninho invisível e marcho, soldado em busca da pólvora. O Exército brasileiro fez um cercado de metro quadrado num cotovelo daquela pista e colocou placa, datada de 1982, anunciando que ali estava plantado um Pau Brasil. O que se vê, no entanto, no meio do cercado é apenas um mamoeiro frutificando suas sementes. Plantou-se um país de tronco majestoso, um aceno à nossa origem histórica, e nasceu outro, de fruta barata, para o bico dos morcegos. Eu anoto sagaz numa folha qualquer do crânio vazio. Acho que isso dá crônica.

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