Ora, vírgulas

 


Eu sei, senhor Ombudsman, que há toda uma gramática normativa guiando os dedos de quem se aventura a encher de palavrinhas e sinais gráficos um texto de cinco mil toques como esse que se inicia agora, um arrazoado que quer, logo de chofre, respeitosamente, vírgula para tudo que é lado, pedir sua bênção e atenção. Admiro os manuais de estilo das redações. Cumprimento todos os que zelam diuturnamente por uma língua mais bem escrita e ao mesmo tempo mais escorreita, sem palavras horrorosas como diuturnamente e escorreita. Saúdo, genuflexo, quem cuida para que a camelotagem da falta de modos verbais não faça dos nossos jornais o mesmo que os bárbaros fizeram nas calçadas da Rio Branco. Polícia para quem desrespeita as regências, chumbo groso nos dilapidadores de pronomes. Minha pátria é minha língua, fala Mangueira, e estamos aí.

Mas, ora, vírgulas, senhor ombudsman – por que tanta consideração pelo excesso delas?

Não leve tão a sério essas senhorinhas gráficas, rabinhos trêfegos, que se intrometem entre as palavras. Elas são como as da vida real. Algumas, apaixonantes, nos hipnotizam a veia sintática e tornam tudo mais expressivo. Elas enfatizam idéias e animam qualquer discurso frouxo. Outras, cá entre nós, só servem para causar tropeços. Atravancam o progresso de quem pretende da vida e do bom texto apenas a delícia de ir em frente sem pausas desnecessárias, sem picotes na pulsação, sem engasgos, apostos, adjuntos, breques que melam o prazer de deslizar fluente de uma palavrinha aqui para outra acolá e se imaginar viajandão assim, sem escalas, por outros mundos.

Ora, virgulas, meu caro.

Vamos peneirar esse acúmulo de interrupções, despachar para debaixo da língua o entulho autoritário do excesso de regrinhas de pontuação. Em alguns casos, elas sobrevivem apenas para mostrar erudição aos incautos, atravancam o progresso do escritor rumo ao que interessa – falar com o leitor sem arrotar empáfia, sem esfregar na cara da platéia um arsenal de vírgulas, travessões, dois pontos, parênteses, cocô de cachorro, fradinhos, carros, caixotes de DVDs piratas e outras porcarias que não deixam ninguém andar mais nessa cidade.

Há muitas vírgulas no mundo. O senhor não sabe, vero Ombudsman, e desculpe se eu charlo onda com esse vocabulário e pretensão, mas Drummond vive sentado não é de hoje naquele banco da Atlântica e uma vez, noite alta, céu risonho, me aboletei ao lado para ouvi-lo. As pedras que ele colocou no meio do caminho da poesia eram de granito semântico. Davam a impressão de graves ocorrências existenciais, das angústias cotidianas da vida. Tudo mentira. O tropeço das retinas fatigadas a que ele se referia era gramatical. Pedra coisa nenhuma. Drummond achava que havia, sim, muitas vírgulas no meio do caminho e isso não deixa ninguém chegar célere, feliz, sangue circulando febril, ao seu destino final, o ponto parágrafo.

A virgula em excesso, aquela que cumpre todas as suas mínimas funções de funcionária pública, está para o texto coloquial, sonho máximo do cronista, como o trem parador para o transporte nos trens da Central. Ela pinga, leeeeenta, um soluço em cada estação. Ela freia o prazer da leitura com a sua necessidade vernacular de anteceder conjunções coordenativas, separar orações adjetivas explicativas e por aí afora. Eu, sempre que posso e vejo sentido, consulto o ouvido e, nhac. Como as vírgulas. Passo por cima das bichinhas e sigo em frente para contar a minha história.

A gramática, graças a Deus, ao Cegalla Viana, ao Celso Cunha, ao Evanildo Bechara, ao Rocha Lima, me favorece com múltiplos casos abertos ao “bom senso”, ao “uso opcional”. Nesses momentos deleto sempre os tais rabichos e parto para o próximo problema. Já não bastava a crase, ombudsman meu? A vírgula não me humilhará com suas necessidades pequeninas, nem sempre disparadas a favor de uma leitura sem esbarrões. Ela não pode soar como o ovo que o afetado põe na boca para falar empolado.

Um cronista carioca escreve de bermudas. Pode, de vez em quando, discursar irado sobre a cidade que vê desmontar aos seus pés. Mas em geral é da paz. Sabe que a vírgula não é nenhuma Rosinha, nenhum demônio a ser espargido aos gritos de xô, nunca mais. A vírgula me garante a pausa expressiva, um requebro irônico, uma mudança de ritmo na cadeira dela e, nos dias sorte, pode conter em seu rabinho minúsculo todo o conteúdo de um livro.

Mas, ora vírgula, senhores virguleiros. Segurem seus excessos. 

Não me interrompam a brincadeira de correr idéias com o gaguejar de seus sinais muitas vezes desnecessários. Eu prometo, entre outros respeitos, usar vírgulas sempre que houver necessidade de indicar elipse do verbo. Gosto dos códigos da língua, uma brincadeira para quem não pode mais brincar de Lego e zelo ao meu jeito pela sobrevivência deles. Quero apenas lipo-aspirar algumas mais gordurosas, aquelas que intercalam sem necessidade o pensamento, travam a vibração das frases. Meu psicanalista, também gramático, é o flanelinha aqui na porta do jornal. O cara sabe. Todo dia ele dá o mantra que pretendo colar em tudo que fizer e escrever por 2007. Deixa solto, doutor.

A língua é culta mas, sacumé, é verão no Rio. Topa umas brincadeiras. Eu garanto que ela não vai ficar bronqueada se eu, cansado de saber da necessidade de uma vírgula antes do mas adversativo, mesmo assim extirpá-la como fiz na crônica passada e o senhor, querido ombudsman, sumiu nas (ou às?) tamancas. Dá mais rapidez, saca? O balão de couro rola serelepe sobre o gramado, e isso é o sonho de qualquer um que junta uma palavra depois da outra. Fazer com que os olhos do leitor transitem sem solavancos, sem aquela paradinha de bola no meio de campo que a virgulagem servidora-pública-da-gramática provoca.

Moro na língua. Vivo da necessidade de seu paladar ser comum a todos. Por mais que eu queira fazer o leitor chegar com fluência ao fim do texto, sei que em alguns momentos elas são fundamentais. Elas isolam adjuntos adverbiais longos. Separam o vocativo. Elas, bem usadas, ajudam a colorir o que deve ser o máximo divisor comum de todas as preocupações de um texto jornalístico – a maravilhosa sensação de clareza das idéias.

E se está claro, senhor Ombudsman, vamos direto ao assunto e ponto final. Revogam-se todas as vírgulas em contrário.

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