Eu sou o pastor alemão Rin-Tin-Tin, o labrador Marley e também o avesso do avesso daquela música cafona - eu sou cachorro, sim, e estou cansado de viver tão humilhado. Sou a cocker spaniel Dama e na outra ponta do espaguete eu sou o Vagabundo, dois corações unidos pelo mesmo amor de sempre e pelo novo medo. Estavam matando gays, refugiados, negros e mulheres. Agora, o ódio à solta, ampliaram o leque. Estão matando cachorros.
Eu sou a collie Lassie, a sheep-dog Priscila da TV Colosso e
só estou aqui porque, protegido pela procissão dos 101 dálmatas, sobrevivi
semana passada aos que mataram Manchinha, a vira lata que perambulava pelo
supermercado com suas moscas, todas se equilibrando vadias de um lado para o
outro do rabo. Era uma cachorra como outra qualquer e parecia repetir o
pensamento do beagle Snoopy: "Minha vida não tem qualquer finalidade,
qualquer direção, nada faz sentido, mas sou feliz". Manchinha só queria
continuar assim, mais algum pedaço de osso para passar o tempo e um amigo que a
guardasse no lar doce lar de uma casinhola de desenho animado. Foi morta a
golpes de barra de ferro.
Eu sou do tempo da carrocinha de cachorro, no subúrbio já
tentaram me matar para fazer sabão, mas eu resisto às pulgas, às bolas de carne
envenenadas e continuo latindo minhas palavras de ordem - acima de tudo sou
fiel, devotado a quem me for amigo carinhoso. Se ainda não ficou claro, eu sou
o labrador Sully, aquele que se pôs ao lado do caixão do velho Bush e,
pesaroso, mostrou ao Trump como se comportar.
Eu sou Baleia, a vira lata famélica do Graciliano Ramos, a
síntese de um povo abandonado, a mais triste morte de toda a literatura
brasileira, e sou também o policial Lobo, o valentão que ajudava o Vigilante
Rodoviário a prender os gatunos. Eu sou cachorro, sim. Dou sorte a quem me tem
por perto, porque sou o Biriba que entrava em campo com o Botafogo, fazia pipi
numa das traves e era por ali, como aconteceu em 1948, que o time se tornava
campeão. Dou inspiração para música, porque estou na marchinha da Carmen
Miranda, aquela do "Eu gosto muito de cachorro vagabundo que anda sozinho
pelo mundo, sem coleira e sem patrão". Você está falando com o próprio.
Eu sou o acovardado Scooby-Doo, sou o foxterrier Milu do
aventureiro Tintim e também o buldogue Zion, morto semana passada no bagageiro
do avião que o levava do Rio para Frankfurt. Faço rir, faço chorar. Sou
Hachiko, o akita do filme do Richard Gere, aquele que, dez anos depois da morte
de seu dono, toda noite ainda esperava que ele saísse da estação do trem de
Shibuya.
Eu sou o cão uivando para a lua, o cão que ladra e não
morde, e o cachorro babucho que lambe carinhosamente as mãos da Luisa Mel, da
Betty Goffman e da Tatá Werneck. A todas essas mulheres que abraçam os pelos
das nossas causas, sou agradecido. Sabem que no início era o bicho - e ele não
pode ser tratado como lixo.
Eu sou o dachshund da propaganda antiga dos amortecedores
Cofap, mas pode me chamar de cachorro linguiça. Complexo de vira lata tinha o
Nelson Rodrigues. Eu sou orgulhoso, sou o cão azul da turma da Mônica.
Cachorrada não é comigo. E aproveito este latido na última linha para desejar
bons projetos em 2019. Seja melhor, seja mais cachorro.
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