Suburbano do sul (13/11/2006)

 

                                


 

 

Senhores doutores do Dicionário Houaiss Ilustrado de Música Popular Brasileira, venho por meio desta mui respeitosamente agradecer a inclusão de meu modesto nome, apenas um crítico eventual de MPB, entre seus 5.322 verbetes geniais. É muita gentileza para tão poucos méritos. As 12 linhas a que fiz jus me honram, enchem de brio e dão satisfação por me cravarem no mesmo espaço físico de Geraldo Pereira, Torquato Neto, Carlos Lyra, Getúlio Cortes, Vassourinha e Jackson do Pandeiro, gente que me ajudou a cruzar esse já longo vale de lágrimas com alguma satisfação. Todas as informações contidas sobre a minha carreira profissional estão corretas. Os livros que publiquei são aqueles mesmos especificados, assim como os órgãos de imprensa em que trabalhei. Obrigado. O que venho por meio desta reclamar – mandando desde já um terno beijo na fronte baiana do Ricardo Cravo Albin, criador dedicado e supervisor geral do belíssimo dicionário – é que a exatidão dos dados sobre a minha trajetória profissional lamentavelmente não se repete quando trata do aspecto pessoal. O jornalista registrado é este mesmo que vos fala. Editor disso, repórter daquilo, colunista de amenidades, um currículo magro de êxitos. Está tudo lá. O cidadão, no entanto, é outro. Aquele Joaquim não sou eu. Nasci no Rio de Janeiro, no subúrbio da Vila da Penha, uma bola de meia encravada entre Brás de Pina e Irajá, uma bola de gude no cotovelo de Vicente de Carvalho. Eu imagino que seja ótimo vir ao mundo em Florianópolis. Viver embaixo da figueira da Praça XV, cruzar todo dia a portentosa ponte Hercílio Luz e sonhar casar com uma daquelas louras de dois metros de altura que vem e que passa na praia da Armação. Tudo isso deve ser extraordinário, não ponho qualquer dúvida nem ponto de ironia nessa afirmação. Não dá para discutir com um Estado capaz de gerar frutos como Guga e Vera Fischer. No entanto, queridos amigos do Dicionário Houaiss, preciso ser honesto com a verdade dos fatos. Não me foi dada pelo Criador tamanha honra de origem. Diferentemente do que está escrito na primeira linha da pequena biografia de 12 linhas que me eterniza ao lado dos nomes fulgurantes da MPB, eu não sou de Santa Catarina. Não nasci em Florianópolis. Sequer um dia cruzei suas ruas bem asfaltadas, não lhe provei também do ar e, snif, muito menos das arianas gigantes. Vim ao mundo num balão japonês que caiu ali na rua Tejupá, uma transversal da estrada do Quitungo, num dia de agosto em que, se lembro bem, se fez efeito sobre a memória o óleo de fígado de bacalhau que tomei na pia batismal do Mello Tênis Clube, o Risadinha cantava num circo instalado logo em frente, na esquina com Honório Pimentel. Tudo isso numa Vila da Penha ainda quase rural, onde as famílias comiam no arroz as rãs que seus moleques pegavam em algum charco local. Ter nascido em Florianópolis me traria um par de olhos verdes no meio do rosto, uns cabelos louros caindo finos sobre a testa e um som menos chiado saindo da boca. A pele vibraria aquele rubor de saúde entre as bochechas leitosas e, tratada sob um sol menos ruidoso, daria arte final bem mais razoável ao visual que se apresenta hoje. O três por quatro sairia melhor mas, nascido em Santa Catarina como quer o Dicionário, eu não teria visto o céu suburbano coalhado de balões quando o Brasil ganhou a Copa em 1958. Não teria visto o bicheiro Peruinha jogando notas de um cruzeiro para a molecada que acompanhava seu conversível. E muito menos passaria chapado as tardes de sábado ouvindo os concursos de mímica no Hoje é dia de rock da Rádio Mayrink Veiga. Definitivamente eu seria um outro, com todas as armadilhas freudianas que isso costuma acarretar. Eu seria um Joaquim Ferreira dos Santos que não teria visto a Império Serrano desfilar terça-feira de carnaval no Largo de Vaz Lobo, não teria subido na roda gigante do parque Xangai na festa da Penha, não teria assobiado fiu-fiu diante o desfile das normalistas do Carmela Dutra em Madureira – e, sabe-se lá, que tipo de ser humano surgiria moldado com os mesmos genes em outro contexto e dez graus a menos na temperatura. Melhor, senhores Houaiss, que eu fique aqui onde sempre estive: jogando meu bafo-bafo, pulando minha carniça e passando sebo na bola de couro número cinco. Não preciso de mais. De vez em quando passa o vendedor de puxa-puxa. Quando volto da padaria, venho comendo o bico do pão. O resto é Monteiro Lobato de manhã, Falcão Negro de tarde e o mocotó da Rose Rondelli me embalando o sono junto com o apito do guarda noturno. Toda essa felicidade posta aqui neste desabafo carinhoso, peço então, queridos doutores do dicionário, que na próxima edição me coloquem de novo no berço da manjedoura inicial: no coreto do Largo do Bicão, se possível cantando o “Bigorrilho”. Sem mágoa. Fomos vítimas de uma praga moderna, a informação que se joga de qualquer jeito na internet e, passada adiante, vai ganhando ares de verdade. Foi o que aconteceu. Há mais de um ano eu já tinha visto um site que me perfilava como catarinense. Calei. Como não me ofendia a honra, achei desnecessário reclamar a perda da nacionalidade. Eis que agora, snif, a informação equivocada se propaga e me atrapalha a glória eterna ao constar como verdade do verbete de enciclopédia. A Vila da Penha, terra de Romário e do capitão Carlos Alberto, já tem o ego satisfeito de referências nobres. Tenho certeza que dispensaria o conserto. Eu, no entanto, carente de maiores orgulhos, sou grato desde já se retificarem na próxima edição. Beijos em todos aí no dicionário do Houaiss, meus mais sinceros respeitos pelo belo trabalho. Mas, por favor, quero minha suburbanice de volta.

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