Vampirizar Capote

 


Vampirizar Capote

 

 

            O inventor do novo jornalismo prova do seu próprio veneno

 

Truman Capote acabara de escrever seu célebre diálogo com Marilyn Monroe, aquele em que tentava erguer a voz acima dos gritos das gaivotas no píer de Nova York e se perguntava, dias depois daquela menina linda ter se suicidado, por que a vida tem de ser sempre essa merda colossal. Estava deprimido. Bêbado. Truman Capote era vocalmente bêbado. Tinha a voz trôpega como uma foca Disney atrapalhada num trigal, uns ganidos afinados em mi como se antecipasse meio século um quadro de bicha do “Zorra Total”. Quando tirava a capa da máquina de escrever virava bicho. Transformava-se no maior escritor da América, o leão sagaz que em seguida colocaria no papel as linhas fundamentais para a formação de todos os jornalistas das próximas gerações. Desta vez, no PJ Clark’s, Truman Capote mostrava não só a voz, mas o corpo trôpego. Tremelicavam-lhe todos os pêlos. Quem quer que estivesse uma dezena de mesas depois, para o norte ou sul de Manhattan, sabia. Capote tinha motivos para deixar subitamente calada, em banho-maria dentro de si, a costumeira doidivana-fofoqueira das colunas sociais. Um estafeta havia jogado com ares burocráticos, e em seguida pediu para o escritor autografar o certificado de entrega da correspondência, uma sentença de morte sobre sua mesa no bar. Não era outra gracinha de Marlon Brando. O ator mais macho de Hollywood ameaçava transformar Capote num suflê Furstenberg desde o perfil “O duque em seus domínios” quando, já no primeiro parágrafo, o selvagem da motocicleta, jogado num sofá de hotel em Kyoto, confessava a Capote que as japonesas o matavam – “e os guris também”. Desta vez não era o ódio do macho pedindo errata dos dotes de sua virilidade na próxima edição. Era o bafo da morte chegando apodrecido após uma longa viagem postal. Os pêlos de Capote tremelicavam com razão.  

Sozinho com suas gotas de lavanda inglesa, seus botões de madrepérola, ele comia um hambúrguer de três dedos de altura.  Havia migalhas no tampo da mesa. Moscas varejeiras em verde e azul recolhiam o que podiam do chão. Uma dúzia de farelos emporcalhados, besuntados pela gordura, salpicava de amarelo as linhas do terno de giz do autor de “Ouvem-se as musas”, o mestre supremo em deixar que ficção ou não ficção, real ou imaginação, ficasse tudo com a mesma deliciosa cara. Ketchup, mostarda no punho da camisa, Capote não estava nem aí. Não há pose possível quando acabou de ser anunciada a morte próxima. O garçom que sempre o atendia no salão dos fundos do PJ, um negro alto, chamava-se Marcel Proust – mas também não havia espaço para risinho cinco minutos depois de um envelope de aparência banal ter cravado em seus olhos a informação crua. Prepare-se. Já era. Perdeu. Apanhei-te, cavaquinho.

A última história publicada por Capote na revista New Yorker era o relato, escrito  em forma de diálogo, sobre um serial killer que já havia riscado dez pessoas do mapa de um pequeno estado do Oeste. Agora, ali no boteco de intelectuais que ganhava pátina do tempo para servir de cenário de Woody Allen décadas depois, era a vez de ele receber o mesmo pequeno embrulho daqueles tristes mortos. A estrela da não ficção virava coadjuvante no ritual de um criminoso difícil de imaginar. Dentro do envelope vinha um caixão de madeira e, dentro do caixão de madeira, a foto da vítima – no caso de Capote aquela escandalosa feita por Cartier-Bresson, uma peça de primor gay, Capote esparramado num banco de jardim, publicada na contracapa de “Other voices, other rooms”. O primeiro a receber o caixão, um fazendeiro, dias depois abriu o carro e não teve tempo de gritar “shit” quando nove cascavéis caíram do teto famintas de carne azeitada com sangue. Uma mulher, a oitava, morreu afogada. Truman Capote havia acabado de publicar essa história em “Caixões entalhados à mão”, um daqueles contos-reportagens que mudariam para sempre o texto de todos que estivessem interessados no circuito entre a literatura e o jornalismo. Era sua vez de receber o mimo fúnebre e, ei Proust, outro dry martini, aguardar como os outros o desfecho que o bandido, diretor de cena, havia desenhado para seus dias.

Truman Capote tinha medo de sapos reais em jardins imaginários e do som dos passos caminhando pelos corredores da mente. Julgava-se culpado pela morte de Perry Smith, assassino da família Clutter, a quem seduziu e abandonou depois de ter recolhido a história de “A sangue frio”, a bíblia do novo jornalismo. Também achava que podia ter salvado Marilyn Monroe de ser apenas a piranha morta na cama dos Kennedys. Essas velhas paranóias juntavam-se agora ao caixão na mesa do PJ e ele fez imediatamente o que lhe era de costume nessas horas de aflição. Refrescava os olhos e o fundo do poço que eles iluminavam com o espelho negro guardado no bolso do blazer. Van Gogh e Renoir tinham o truque, uma necessidade técnica entre os pintores – e se houve alguém capaz de pintar com palavras, este pincel é de Truman Capote.

Era um recuerdo dado por uma negra aristocrática da Martinica. Durante a apuração do conto-reportagem “Música para camaleões”, ela entregou a Capote o espelho de nolso que Gauguin usava para descansar os olhos da extravagância de suas musas multicores. Capote lançava mão do presente nos momentos em que precisava mergulhar a alma em algum bálsamo aconchegante. Do mesmo jeito que os gourmets reavivavam o palato com um sorbet de citron entre os pratos, os pintores enxugavam no vidro escuro os olhos das cores anteriores. Truman Capote, Alice no país das maravilhas do novo jornalismo, usava o espelho profundo para sintonizar o nada e esconder a angústia de morrer picado por uma cobra moccasin em meio ao próximo gole de vodka no PJ Clark. Seria uma história espetacular, as baleias parariam de assobiar acalantos e se renderiam humildes à imaginação daquela trama. O escritor morto pela própria história. Só de pensar que Norman Mailer, o arqui-rival, pudesse reconstituí-la na Esquire, deixava Capote nauseabundo, com vontade de tomar umas pílulas e antecipar, sem glamour, o trabalho das minhocas venenosas ... – mas, sorry, era só um pesadelo de estilo, brincadeira de um cronista do futuro. Um mané-joaquim qualquer tinha acabado de ver o filme sobre o escritor, relido a história dos caixões e as outras da nova edição de “Música para camaleões”. Embaralhou tudo e mais uma vez, como dezenas de outros de sua geração, tentava vampirizar Capote em seu estilo genial.

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