Pegou um táxi e foi beber com a turma do ‘Pasquim’
Ilustração de O Globo - 01/07/2011 |
Eu saí do filme do Woody Allen na Paris dos anos 20 pensando “nostalgia é a vontade de se voltar saudoso a um passado que, a não ser no cinema, nunca existiu”. Não deu tempo de elaborar melhor a frase, juntar estampas Eucalol entre as partículas passivadoras, borrifar um patchouli entre os verbos e agregar valor ao tirocínio. Chovia. Eu estava eufórico com o filme, mas cansado da vida, cansado de mim, velhice chegando, e eu chegando ao fim — e foi aí, no pâncreas do meu eu sorumbático, que o sino da igreja de São José gemeu mais uma meia-noite fantástica.
Entrei no táxi, disse “Ipanema”, e o motorista, depois de tragar o Chanceller, o fino que satisfaz, me deixou na mesa do bar Jangadeiro, na Praça General Osório. Tarso de Castro, Ziraldo, Paulo Francis e Jaguar discutiam com Millôr Fernandes a capa do próximo número do “Pasquim”.
Perguntei ao Ivan Lessa se o Artur Xexéo não havia exagerado em dizer que eu só escrevia nostalgia. Ivan puxou da Olivetti um artigo que acabara de escrever sobre o Almanaque Capivarol, uma cornucópia de tatuís na banheira, cabeçadas de Heleno de Freitas na trave de General Severiano e trinados de Linda Batista no palco-auditório da Nacional. Ivan descrevia nos anos 60 a maravilha de ter sido carioca nos anos 40, “aquilo sim”.
Em defesa do que Luzia para sempre perdera na horta, Ivan bateu o bumbo e me mandou anotar um torpedo ao Xexéo. “O futuro é para se roçar nas ostras, comigo, não, violão” — ele falou e disse, mas se recusou a explicar. Era a Ipanema do final dos anos 60, a nova capital do charme do Rio, válida e inserida no contexto. Dava para ouvir ao fundo os aplausos ao pôr do sol no Posto Nove, mas intelectuais não iam à praia. Bebiam ali no Jangadeiro e metiam o pau no Costa e Silva, no Simonal e no David Nasser. Os editores do “Pasquim” trocavam “Sifu” e “Quiuspa”, uma língua inventada na redação para burlar a Censura. De vez em quando, serviam cerveja no pires a um cachorro hedonista embaixo da mesa.
Passou um coelho correndo perto do balcão, mas eu fingi que não vi. Era um delirium tremens provocado pela imaginação fértil de José Carlos de Oliveira, o cronista do “Jornal do Brasil” que, sozinho, namorava num copo a cirrose que o mataria. Eu ia dar um toque, bancar o Padre Pedro, mas me lembrei de uma crônica em que Carlinhos escreve sobre os defeitos de cada um. Ele acreditava na necessidade de curar apenas os dramas que não são naturais e cultivar, feliz, os mais gostosos. Recuei. Deixei-lhe a vida seguir ao gosto.
Daquela mesa do Jangadeiro dava para ver o mundo, e ele era constituído pelo pranchão do Arduíno Colassanti, a calça saint-tropez da Adriana Prieto, o topless que a Monique Evans faria nas Dunas da Gal, a tanga enfiada da Rose di Primo e os pentelhos da Tânia Scher por fora do biquíni, um conjunto de desafios à burguesia e ao status quo, na promessa que o bairro fazia a todo o país de deixar o Jeca Tatu de lado e finalmente ser moderno.
O Carlos Leonam anotava as cenas para a sua coluna Carioca Quase Sempre, no Caderno B. Era o novo paraíso, a Pasárgada, a Maracangalha, a felicidade brasileira reunida em meia dúzia de quarteirões e na possibilidade de um dia, a democracia também traria isso, beijar a Duda Cavalcanti. Os inimigos eram os espigões da Gomes de Almeida Fernandes. Eles subiam paredes por todos os quarteirões, mas os boêmios na mesa do “Pasquim” tranquilizavam a todos. Aqui, del Rey!
O táxi tinha me deixado na capital carioca do final dos anos 60, um projeto de revolução que Arnaldo Jabor levava todo dia à praia para pegar jacaré, certo de que breve, depois da arrebentação, estava finalmente o dia em que este país chegaria ao futuro e seria uma grande Ipanema, todo mundo na política do frescobol, dando raquetada na cara da caretice.
Pedi uma lentilha garni e coloquei “É mocotó”, com Erlon Chaves, na jukebox.
Com o rabo de olho da direita, vi Carlos Drummond de Andrade usar a linguagem dos surdos-mudos para dizer “sejamos docemente pornográficos” à mulher à sua frente. Ele é casado, ela é a outra que o mundo difama, mas em Ipanema ninguém repara.
Com o rabo de olho da esquerda, vi Tom Jobim e Chico Buarque chegando do Maracanãzinho, os smokings sujos de ovos jogados pela multidão ainda ignara, mas que logo, a revolução ipanemenha prometia, provaria do melhor da cultura. Do outro lado da rua, fingindo conversar com as tartarugas que Mestre Valentim colocou no chafariz da praça, um informante do Dops filmava. O jacaré criado nas águas havia sido morto por um gavião que vinha da cobertura do Rubem Braga. O informante do Dops fingia reportagem sobre “a Suécia tropical, as novas relações amorosas no Rio” para o “Jornal de Vanguarda”, da TV Excelsior. Ao ser perguntada sobre o que achava do amor livre, a atriz Maria Gladys olhou firme para o rapaz e respondeu: “Topo”.
O Jangadeiro vibrava o êxtase criativo do final dos anos 60, a volta, que se previa inevitável para a qualquer momento, do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Os homens sensíveis estavam ali. O psicanalista Eduardo Mascarenhas dizia do seu projeto — em cada mesa havia um — de “desnudar a alma”, de não querer ser “uma alma vestida de ceroulas”.
Os intelectuais estavam no poder, pelo menos no Jangadeiro, e eu disse “Ica-Cilda” para os quatro botões dourados da minha japona Ducal quando um homem vestido com um escafandro entrou. Todos continuaram conversando, até que o poeta Ferreira Gullar deu um soco na mesa e, “pô!”, mandou que parassem com o fingimento blasé.
Pedi a conta. Achei que já tinha visto o suficiente daquele filme sobre a reinvenção do espanto e da felicidade de ser carioca no final dos anos 60. Chamei o táxi pela internet. Quando passei pela mesa do “Pasquim”, Leila Diniz, chegada de um banho de mar noturno, ainda com uma toalha branca na cabeça, dizia que podia amar um homem e ir para a cama com outro — e deu uma gargalhada tão alta que fez o coelho sair correndo pelo meu delirium tremens afora.
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