Café na calçada (1/4)

                                     Leite A, mel orgânico e o ex-amor
imagem da internet
*veja a continuação dessa história nos posts Café na calçada 2, 3 e 4

Eu ia fingir que não vi ela e colocar a culpa no cacófato, tropeçar no paralelepípedo do português ruim que me obnubilou a visão e me esborrachar no chão. Passar por morto. Vítima de uma queda de cabeça lamentável, ficar por ali, respiração suspensa, esperando em decúbito dorsal que a ambulância conduzisse o defunto, eu, tão jovem, para longe dos olhos dela, algum lugar ignorado onde eu poderia voltar a respirar, orgulhoso de não ter visto a cena completa que pressentira quando a percebi entrando no canto esquerdo do meu olho direito. Era ela e o seu novo amor sentados à mesa no meio da calçada de um desses restaurantes do Leblon onde os casais tomam café da manhã aos domingos, ainda com os cabelos molhados de algum arrulho matutino e uma roupa de malha Hering jogada por cima das carnes, sem ostentação, apenas um pano qualquer sobre o corpo, uma sinalização aos próximos de que, logo depois desse café romântico, vão continuar a fazer em casa as outras etapas do que possam ter deixado de praticar nos primeiros embates amorosos daquela manhã.
Era ela, o amor, o ex-amor, a fossa, a ferida que abre-e-fecha, um samba-canção que não termina, tomando café com seu novo Príncipe Valente ou seja lá qual for o herói que passou a habitar seus Trousseau e Alfaias desde que um dia, sem mais, bateu a porta sem olhar para trás. Dispensou a sonoridade ruim de todas as rimas pobres que um fim de amor sempre registra e, com uma camiseta da Alice Me Disse, um saiote desconstruído da Osklen, saiu de cena.
Eu já estava no meio da calçada. Havia ultrapassado a segunda mesa que marcava a entrada na área geográfica daquele café do Leblon e ela, com o cabelo preso do jeito que eu sempre pedia para não usar, estava na terceira mesa adiante. Naquele primeiro momento acabava de passar geleia no waffle em forma de Mickey Mouse, enquanto preparava a mão para segurar a xícara de café com leite.
Eu não tinha mais como dar a volta. A figura de um homem cruzando rotineiro a calçada pode não ser registrada na retina de alguém que está distraído, mas se ele estanca em breque ríspido, dá meia volta e toma outro rumo, o radar de quem estava mirando a cara do Mickey pode se interessar pelo ruído do movimento no outro canto do quadro — e aí virar a câmera naquela direção. Isso faria com que ela fixasse os olhos em quem surgia de jeito pouco rotineiro na calçada, descobrindo em seguida que era eu, o ex-amor, aquele a quem ela havia riscado sem dó, sem oh!, do caderno da vida, e ali dava provas de que havia sido melhor assim. Ela trocara as angústias da relação cansada, cheia das cobranças dos casais presos há muito tempo, pelo leite A, o mel orgânico, a geléia de strawberry fields forever, a felicidade dominical de repartir o pão de chocolate no café royal, R$ 50, com o novo senhor do seu castelo.
Eu cruzava a calçada no passo acelerado de quem segue movido pela música do Metallica que, ela sabe e não gosta, me vai sempre no iPod. Eu ia, não tinha mais como voltar, na direção exata dos olhos dela, o pateta que ela veria no quadro seguinte se levantasse os olhos do Mickey. A meu favor havia o primeiro fato, de estar acobertado pelo facilitário dos óculos escuros, tornando um mistério aos olhos dos outros para onde miravam as meninas dos meus. Além disso, eu caminhava ajudado pelo fato e fotos número dois de ela me ter em primeiro lugar na lista dos seres mais desligados do mundo, o que tornaria natural eu passar a mil, com ares de quem ia mais uma vez ali na banca da Piauí comprar jornais e revistas, o pão estressante de ministros corruptos e o bolo amargo da crise econômica que ela sempre pedia para eu parar de consumir, pelo menos no café da manhã de domingo.
Eu estava a quatro passos de entrar numa cena de felicidade em que já estivera por longo tempo e dela havia sido deletado por um corte que custara muito Mertiolate para cicatrizar, muita pomada Minâncora para não mais arder. Evidentemente não queria reabrir as chagas no calçadão do Leblon e exibir a dor em frente a todos aqueles brioches da felicidade alheia.
Eu não sabia sequer — e provocava o coração para que ele decidisse rápido, faltavam apenas três passos e ela já se cansara de olhar nos olhos de geleia do Mickey — se o órgão propulsor dos meus sentimentos bateria um tambor movido às pilhas do desconforto ou se ele se movimentaria ao som civilizado das quatro estações do Vivaldi. Alguém das internas precisava me ajudar a decidir se eu passaria batido ou, “olha quem está aqui!”, beijaria como se fosse um amiguinho a bochecha da ex a quem eu nunca mais vira, a ex que provocara tantas angústias aparentemente resolvidas numa terapia a R$ 400 por hora, mas que mesmo assim insistia em passar, ora cantando uma música do Leonard Cohen que só ela conhece, ora desvestida num conjunto branco da Loungerie, nas resenhas que a memória da gente faz todo dia da vida que poderia ter sido se os amores ficassem por aqui, eternamente satisfeitos com o suco de laranja das histórias que contamos, a manteiga Aviação da nossa fidelidade, e não insistissem em provar café em outras esquinas.
Eu tinha decidido passar a mil. Era muito cedo e domingo para ir ao sótão e examinar como vão os sentimentos. Mas eu sabia desde o início da calçada, quando percebi que ela estava mais bonita do que nunca, o cabelo num coque que lhe alongava o pescoço, o vermelho da blusa no velho truque de se misturar com o louro do cabelo e explodir as cores da fotografia, eu sabia — mas só vou contar o resto na próxima semana — que ela não daria o mole de deixar passar a oportunidade de exibir como estava novamente tão feliz.

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