Café na calçada (3/4)

                                  Mingau, canela e a sentença do Tribunal do Amor

Colagem com imgs da internet
*Veja os outros primeiros capítulos dessa história aqui Café na calçada 1, 2 e a última parte aqui 

‘Você não morre tão cedo”, ela gritou no capítulo da semana anterior, fazendo com o braço uma cancela para que eu parasse, numa calçada do Leblon, e me sentasse à mesa onde tomava o café da manhã com o novo personal de seu coração. Era o amor, o ex-amor de minha vida mal passada. Um ano atrás, quando aparecera pela última vez no meu texto, ela tomara a liberdade de pegar a caneta e fechar um parênteses no meio da oração. Sem mais, sem considerações de estilo — e saiu de cena. Agora, sorridente, como um copidesque que reescreve ao bel-prazer a existência alheia, eis que ela resolve reabrir o parênteses para colocar sabe- se lá que cereal no meu café literário.
O amor, este ex-amor costumava contar histórias muito compridas, fascinada por ouvir sua voz amaciada num curso de cantoterapia do Antonio Adolfo, e agora, pela primeira vez, eu me lembrava com satisfação da taquicardia coloquial que a acometia nestes momentos de ênfase. Falava pelos cotovelos, como se diz, mas tinha os cotovelos lindos, banhados na loção pêssego da Victoria’s Secret. Havíamos combinado, nos tempos ridos, que no meio de uma reunião social, quando eu penteasse com os dedos os pelos da sobrancelha direita, seria o sinal de que o texto estava estourando na página, e ela precisava arredondar o causo, encerrá-lo imediatamente sob o risco de as pessoas debandarem da roda atirando chapinhas de Crush ou qualquer outro disparate em sua cabeleira loura.
Desta vez, insone, na calçada do café do Leblon, assustado de encontrar tão cedo pela manhã o amor, o ex-amor de minha vida reprovada, eu me recordei da loquacidade dela como uma bênção que me salvaria do nocaute. Um ano antes, na última cena de nosso amor fulgás, regado a muita música, ela havia batido a porta sem olhar para trás, como num bolero do Chico. Saíra de cena espalhafatosa ao som do Gato Barbieri tocando o último tango para que o Marlon Brando cruzasse o salão arrastando a Maria Schneider pelas pernas bêbadas.
Pego de surpresa na manhã de domingo, eu desliguei a música do iPod e me pus todo ouvido, uma expressão que ela adorava pois, ao mesmo tempo que manifestava minha submissão à sua fala deliciosa, também evocava um quadro do Dalí que havíamos visto em Nova York, de formigas saindo de um imenso tambor auricular. Ela podia ter defeitos de fabricação, o de gesticular com o talher na mão ainda se mostrava presente naquela manhã,
mas sabia rir. Não é pouco.
Sentei à mesa, o ringue daquele inesperado ultimate coffee fighting de domingo pela manhã, com a estratégia de luta definida. Ela, loquaz, falaria cestas e cestas de brioches, uma arte que trabalhava com charme. Conduziria a conversa com o sorriso e o estalar das asas de borboleta que costumava engendrar com naturalidade para conduzir suas histórias. Do outro lado do ringue, atrás apenas de um expresso, pois eu inventara que havia trabalho em casa me esperando, estaria este repórter de sempre. Prestaria muita atenção, não faria qualquer declaração. Apenas perguntas. “E aí?” “E então?”
Eu colocaria azeite balsâmico para fazer rodar o pão da conversa e fingiria acompanhar com atenção as respostas, enquanto a memória, que não se presta a essas etiquetas públicas, vasculharia, sôfrega, as polaroides de suas anáguas levantando, de seu corselete de sianinhas liberando os botões, e da combinação da loja A Futurista caindo sobre o sinteco. Aquele encontro poderia realmente dar um episódio de “Friends” ou um suspense de Hitchcock se o personal usasse a faca do pão de jeito não dogmático, mas também serviria àqueles programas científicos em que uma câmera é posta a circular nas veias do cidadão. Desta vez, as lentes descobririam as fotos do ex-casal namorando em frente ao espelho, coágulos servindo de tela para a projeção de algum filme de amor reprimido, um bandoneon triste tocando ao fundo, do Wong Kar-Wai.
Mas, diga lá então — propus, como o condenado no cadafalso pedindo ao carrasco que acabe logo com o sofrimento e estique a corda — por que eu não morro tão cedo?
A memória de um amor, de um ex-amor como o que ora se faz narrado neste folhetim tão saramandaia, já tão mais comprido que a restinga de Marambaia, ela é costurada por todas essas músicas que tocaram nas linhas anteriores e mais as baladas soturnas, com as próximas notas sempre na meia-luz, de John Coltrane. Ela é feita de todas essas cenas projetadas na parede da página e mais as de Klaus Kinski carregando, com a fúria insana que move as grandes paixões, o barco do Fitzcarraldo morro acima. Pois agora era a vez de o amor, meu ex-amor de uma edição esgotada, abrir a lata diante do meu expresso curto e deixar escapar o perfume do biscoito que lhe ficara na memória.
Ela queria dizer, e o fez pontuando a frase com goles no suco de laranja sem gelo, natural,um hábito que de início reprovara em mim e que depois assimilou — ela queria dizer que eu não morreria tão cedo pois acabara de sonhar comigo naquela noite. Sorri gelado, sentindo a madeira do cadafalso estalar nos pés. Era o justiceiro que começava a cumprir a sentença espalhada por alguma vara do Tribunal do Amor. De vez em quando, eu também sonhava com ela, mas nada confessável numa mesa de café da manhã, ainda mais diante do novo personal do coração, que, por sinal, percebeu não estar em perigo e continuou a tratar das fatias de peito de peru.
A fibra da corda encostou na minha garganta, mas eu conhecia o amor, o ex-amor de uma mulher magoada, e sabia. Vingança é mingau a se comer pelas beiradas, devagar, pedindo ao garçom mais um pouco de canela, outro tanto de adoçante. Ela levaria o tempo que pudesse,até a próxima segunda-feira pelo menos, para executar ali, em praça pública, na frente de todo o Leblon, a indenização por danos vinícius e morais que a Justiça dos sonhos, da falta de poesia e dos amores frustrados lhe havia autorizado cobrar a quem de direito.

Comentários

  1. Sou muito fã de tudo que este homem escreve, quando fala de amor me deixa encantada.
    Parabéns, Joaquim!!!

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