Café na alçada (2/4)

                                         Manteiga Aviação e a fúria amorosa dos elefantes

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*Veja o primeiro capítulo dessa história aqui e os seguintes 3 e 4

Pois, então, como dizia, lá ia eu pela calçada do Leblon quando surge o amor, meu ex-amor de uma vida passada, a musa reencarnada de uma canção que um dia havia começado em sol maior e acabara em dó menor. Eis que ela reaparece no canto direito do meu olho esquerdo empapando de geleia dominical o waffle com a cara do Mickey na mesa farta de um café da manhã ao lado do novo personal de seu coração.
Eu ia passar a mil, como estava explicando na semana passada, temeroso da desarrumação que um encontro desses poderia provocar no sótão de meus ressentimentos, um cômodo acanhado, de memórias idem, que mantenho convenientemente empoeirado. São várias pilhas de fotos de foco vacilante, beijos partidos, abraços frouxos e palavras mal interpretadas, uma montanha de ciclotimias amorosas e convulsões sem fim. Para que tudo não desabe e me atravanque ainda mais os escaminhos, deixo tudo como está. “Let it be”, pede o cartaz dos Beatles na parede do sótão.
Enfim, eu ia passar pimpão, alheio ao café Pilão que ia à mesa da moça, um tipo de rima infantil que a divertia antes de ela se dedicar a desenhar o Mickey com mel, mas ouvi um sinal sonoro avisando que não havia mais jeito.Era a voz de mulher no GPS que trago instalado em meu sistema de segurança emocional, e ela sussurrava em vermelho que havia “Radar a um metro”. Foi nesse exato momento que o amor, o ex-amor da minha vida amassada, não deixou que eu tomasse as rédeas do destino — e provocou um breque no riff do Metallica que me ia no iPod.
Ela esticou a mão na direção da minha mão,como se no gesto carregasse uma borracha sorridente que no caminho fosse apagando todas as cenas dramáticas, todos os ritos de ciúme e mixarias do nosso fim de caso. Nenhum dos dois tinha se socorrido dos serviços de Mãe Valéria e procurado trazer o amor em 24 horas. Ninguém sofreu mais que o tempo regulamentar. O amor acaba, nem sempre em decúbito dorsal e fogo ateado às vestes. Foi o caso. Ficara um rancorzinho, o de praxe, benigno, aquele que faz com que o outro de alguma maneira permaneça com a foto na cristaleira da sala. Um ódio civilizado, quase homenagem, e ele agora, perigo, perigo, gritava o GPS, corria o risco de substituir a manteiga Aviação no café da manhã de domingo no Leblon.
Ela entrou em campo com um drible Ronaldinho Gaúcho, aquele em que o jogador dentuço olha para um lado, dá a impressão aos adversários de que vai por ali, e passa a bola para o companheiro que ficou livre no canto oposto onde ele olhava. Ela fez o mesmo. Continuou com os olhos fitos no Mickey, mas em centelha de segundo suas retinas ainda não fatigadas, jovens, lindas, haviam flagrado que eu me aproximava — e sem fazer com o rosto qualquer sinal, sem olhar para mim, ela esticou a mão sobre a calçada, segurando a minha mão e impedindo que eu fugisse da cena de sua nova felicidade.
Pois então ali estava o amor, o ex-amor que eu não via há um ano, desde que foram proferidas as últimas palavras, um fabuloso “faz me rir” que ela disse com um acento irônico, quase uma piada interna, pois recuperava uma expressão de deboche comum nas nossas famílias portuguesas. O “faz-me rir”, no caso, não é uma oração imperativa, de alguém pedindo ao outro a graça de uma piada. Para os portugueses, em sua lógica particular, é o contrário. O “faz-me rir” quer dizer “tu me deixas louco de raiva com a tua incapacidade de me fazer feliz”.
Foi assim, a lâmpada apagou, a vista escureceu, e o beijo nunca mais se deu. Ela bateu a porta da infelicidade um ano atrás, choramingando sem ênfase as mágoas de um amor com prazo de validade vencido, e a reabria agora no Leblon, leite A com o prazo escrito no pacote, pão de chocolate e um personal para assuntos aleatórios no outro canto da mesa. Ela me estica a mão, o braço funcionando como uma cancela para que eu não siga adiante, e, antes que eu comece a armar um sorriso de falsa surpresa, ela já está dizendo alto, para que o barulho do trânsito não atrapalhe aquele momento de iogurte dramático, ela está quase gritando “você não morre tão cedo”, uma frase que eu imediatamente juntei ao deboche do “faz-me rir”, suas últimas palavras no capítulo anterior, e achei, procurando não revelar o desconforto por trás dos óculos escuros, que ela queria dizer justo o contrário. Queria gritar “Mas você não morreu?!”.
Ela continuou sentada, e eu me curvei para lhe dar os dois beijinhos da etiqueta na certeza nelson-rodrigueana de que não há nada mais triste do que o ósculo protocolar, no centro da bochecha da ex-mulher amada, quando já se preencheu cada centímetro invisível daquela face, os mais recônditos desvãos, com beijos sôfregos e fora dos padrões públicos. Fi-los, os beijos nas bochechas, com a frieza exigida. Da mesma maneira apertei a mão de Felipe, que ela me apresentou sem aposto, sem o cargo que ele ocupa na empresa de suas emoções, um cumprimento que da minha parte pareceu ter sido elegantemente cordial, sem dar a bandeira de que, na insônia daquela madrugada, eu tivesse acabado de ver no National Geographic um filme sobre a transformação dos pacatos elefantes indianos em feras raivosas quando estão diante dos rivais que disputam suas elefantas.
Enfim, estava criada uma cena que poderia acabar num canal de vida selvagem ou num capítulo de “Friends”. Tudo dependeria de como andava o texto do grande roteirista lá em cima para encaminhar o diálogo de seus personagens a partir da necessidade de um dos atores explicar por que o convidado especial não haveria de morrer tão cedo. Também poderia dar um Hitchcock, pois ele gostava de armar cenas de suspense em torno de uma mesa de comida. Naquela, armada na calçada de uma padaria do Leblon, havia apenas facas de pão. Eu achei que no máximo aconteceriam cortes superficiais na pele do coração, sem atingir a aorta, se eu aceitasse o convite que ela em seguida fez para sentar e ouvir por que não morreria tão cedo. Tratava-se de alguém garantindo que eu sairia vivo no final. Para quem andava carente de boas notícias não era de se desprezar, num domingo de manhã, receber um certificado de sobrevivência — embora, como será revelado na próxima semana, todo amor, ainda mais um ex-amor, minta muito.

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