Café na calçada (4/4-final)

                                   Último capítulo, patrocínio dos biscoitos Duchen

Img da internet
*veja os capítulos anteriores dessa história nos posts Café na Calçada 12 e 3 

Para quem chegou agora a esta calçada deflagrada do Leblon, faça-se o resumo da ópera que de algum modo, talvez um texto com virgulação melhor, já aconteceu no teatro de quase todo mundo. A história banal de uma mulher que, suspeitase, leia até o final, tenta vingança, vingança, aos santos clamar. Tem música de fossa e gastronomia ligeira. A personagem principal é o amor, o ex-amor de minha vida desparagonada, aquela a quem se julgava confortavelmente desaparecida, sem apelos dramáticos nos postes, mas que de súbito surge, domingo de manhã, rodeada de leite, mel e salada de frutas regada com iogurte desnatado.
Ela tomava café com o novo personal de sua academia sentimental e quando me vê passar pede feliz para eu parar, pede linda para eu sentar com eles e songamonga diz, na lata de biscoitos Duchen que trago sempre na minha cara antiga,que eu não morrerei amanhã, eu graças a Deus não morrerei tão cedo porque ela sonhou comigo naquela noite.
Eu sou o tipo de homem que os dinossauros chamavam de “cabreiro”. Nascido de uma família de Trás-os-Montes, uma taciturna aldeia de agricultores ao norte de Portugal, caminho pela vida com os dois pés atrás. Confesso que a prática diária do jornalismo por quase um século numa redação da capital não me ajudou a acreditar em notícias boas prestadas com tanta generosidade e sem ônus à reportagem.
Admiro, sem ironia, essas pessoas que vão para as ruas vestindo camisetas com a inscrição “Eu amo isso”, “Eu amo aquilo outro”. Devem ser felizes, cheias de amigos e perfiladas como “gente boa” no Facebook. Eu, se usasse camisetas com inscrição, se tivesse tempo para escrever mais uma mensagem ao próximo, grafitaria a honestidade lusojornalística de um “Eu desconfio de tanto amor”.
Politicamente correto e massacrado pela necessidade de redigir milhares de outras palavras ao dia, abro mão de ser redator também de camiseta. Só as uso silenciosamente pretas. Não é um protesto, não é um estilo Black Sabbath de levar a vida. Talvez, no máximo, uma tentativa de piada muda, “Lá vai o homem da caixa-preta”. A caixa-preta, como todos sabem, permanece em silêncio, até o momento em que se dá o desastre. Pois, naquela calçada de café ao ar livre do Leblon, estava quase chegando a hora de rasgar o pano, abrir o peito e expor a dor do que foi dito pelos dois aviões em rota de colisão.
O amor, o ex-amor de minha vida tão mal passada deu uma dentada no waffle com a cara do Mickey toda besuntada de mel e me disse, desta vez sem rebuscar o estilo, sem abrir orações coordenadas, sem descrever o clima e o cenário como gostava de fazer em sua literatura coloquial, ela me disse seca, graciliana, que no tal sonho daquela noite eu e ela comíamos de novo aquele folheado de queijo, “sem graaaaaça”, na Mesbla.
Fez um ponto. Abriu um parágrafo. Olhou o personal, que esperava a indicação de como reagir. Ao fim da pausa, ela escancarou o deslumbrante efeito dramático, cada canjica desenhada na cor e na proporção certas, de um sorrisinho de ironia.
Estamos em 2011, já se ouvem na esquina os fogos de 2012, o ano em que desta vez o mundo vai acabar mesmo, e, basta ver pelas bancas de jornais, não se faz mais “Luta Democrática” como antigamente. Era todo dia uma manchete dedicada a alguma vingança amorosa, um amante em decúbito dorsal, outro com o fogo ateado às vestes e outro ainda com a faca atravessada na garganta. Todos silenciados para não gritar mais que iam embora, que tinham encontrado um novo amor, que não aguentavam aquele inferno — e todo o resto que é dito segundos antes de se bater o celular na cara do outro, o pafúncio infeliz que atravanca nossa existência.
O crime passional já era. A vingança agora é um café da manhã que se serve, quer queijo de cabra?, mais um pão de chocolate?, na calçada do Leblon. Era o que estava acontecendo.
O amor, o ex-amor daquelas noites ao redor dos canais de Veneza, tinha desligado não só as gôndolas, mas também a memória do vizinho do andar de baixo reclamando das risadas escandalosas pela madrugada. Já apagara por completo o livro com a tiragem inicial de dez mil exemplares, todos dedicados a ela, seu nome impresso em tinta eterna — e abandonara essas homenagens, a noite de aniversário hospedados no Copacabana Palace, para arquivar apenas a antipoesia de um lanche às pressas que aconteceu antes de um cinema. Tantos Sonhos de Valsa. Ficara, murcho, o folheado de queijo na vitrine da sua padaria espiritual.
“O que era aquilo?”, continuou, saboreando ao mesmo tempo o waffle com a cara do Mickey e a vaguitude da frase, que ela juntou com novo risinho de deboche e um balanço desengonçado de corpo para sublinhar, pelo menos foi o que o meu GPS junguiano detectou, quão pateta achava aquele registro em sonho de uma cena real da vida passada. Agora, com leite A na xícara, manteiga Vigor no croissant, personal de afetos ao lado, ela queria passar a limpo a qualidade daquele velho amor alimentado por folheados de queijo.
Sorri de lado, fingindo um gentleman meio de banda, e toquei só para eu ouvir a última música da história, aquela do “reconhece a queda”. Um amor, por mais ex-amor que seja, pode ocupar dezenas de páginas de jornal com a memória de suas impossibilidades. Era preciso um ponto final rápido. Pode-se atravessar todas as manhãs de café dos próximos domingos tentando entender onde foi que acabou, em que momento o folheado de queijo murchou — e como continuar na calçada da vida sem ser abatido pela explosão dos bueiros dessas infelicidades passadas. Eu disse que “aquilo” tinha sido um grande filme-cabeça, o dia em que fomos ver “Asas do desejo”, o do anjo apaixonado que observa a bailarina impossível no balanço sobre Berlim.
Era uma sinopse tão enigmática quanto a pergunta que ela me havia proposto. Eu a pontuei — feliz com a redação, sem qualquer vírgula em riste aceitando a provocação para a briga — com um último gole no expresso. Precisava ir, desculpei-me. Dei dois beijos de despedida nas bochechas dela e senti de novo a nostalgia de sua pele. Eu disse “maçã, Victoria’s Secret”, e a última imagem que me ficou do amor, meu ex-amor dessa vida tão  cheia de buracos pelas calçadas, foi a do sorriso que abriu.

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